Cartografias da saudade

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"No fundo, escrevo para perdurar, p'ra existir": a poesia de Ivete Nenflidio
por Tamires de Carvalho
Antônio Cândido, no livro "O estudo analítico do poema", disse que os poetas não se cansam de nos mostrar a contraditoriedade da vida: amor e ódio, prazer e dor, medo e vontade, estão sempre juntos. Muito antes que a psicologia moderna pudesse explicar a realidade sobre os sentimentos humanos, lá já estavam os poetas. Nas palavras do crítico literário, “a arte percebeu antes da ciência”.
Nos poemas de Ivete Nenflidio, em seu mais recente livro "Cartografias da saudade", sentimos com clareza esse caráter contraditório da vida. Essa dualidade que hoje entendemos como sentidos opostos que se complementam, assume um valor próprio dado pela autora em seus versos. 
Nos mapas de Ivete a direção é para a natureza. A força de sua poesia está na pele, na separação forçada dos corpos apaixonados, no íntimo. A coletânea transborda paixão: é chama e também cinzas; saudade que aperta e traz recordações de bons momentos vividos. É memória, é urgência. Fala da efemeridade da vida, ao passo que mostra ser essa, também, a sua constância.
Em “Virgínia”, “sobre a ancestralidade do Vale do Jequitinhonha”, dedicado à avó da escritora, vemos a narrativa da tradição feminina passada ao longo de gerações: benzedeiras, parteiras, mulheres portadoras de uma sabedoria ancestral. “Mulheres de Minas”, como diz a poeta, em uma exaltação não só do interior do país, como também do sagrado feminino, que resiste apesar de tudo.
A autora também reflete sobre o fazer poético, sobre o lugar que a sua poesia ocupa no panteão literário, especialmente nos versos de “Quem me dera”. Fala sobre a voracidade do fazer arte. Em “Pintura”, que fecha a coletânea, Ivete traça um cenário em que o pintor é ao mesmo tempo regente da arte e regido por ela.
São versos com alma, e o ritmo nos convida a percorrer todo o caminho trilhado pelo artista para dar vida ao seu trabalho: tela escrita com tudo aquilo que transborda. Experimente aqui ler em voz alta. É possível que você veja o pintor fazendo seu esboço, dando significado aos rascunhos, em uma dança que acompanha o ritmo do coração. Talvez você sinta o cheiro da tinta.

“O artista, apaixonado pela sua criação,
se entrega à paixão e ama delicadamente sua
mais recente obra-prima.” 


“Cartografias da saudade” é um livro de afetos. É poesia que clama por calor e por suor. É uma experiência inebriante de leitura.
POemas - Cartografias da Saudade image
Poemas do livro Cartografias da saudade

Quem me dera
Meus poemas?
Ah! São tolos…
Tenho versos ordinários, porcos…
São sintéticos, como flores de plástico.
São como borralhos de cinzas podres,
estão mais para ditados populares,
são como o gosto amargo do tabaco
do cigarro que trago,
São como cais desertos,
distantes de seus barcos,
sim, são assim, são rasos, vagos,
são como nós-cegos.
Não são como as ardentes e conscientes palavras de Pablo,
estão distantes das espantosas metáforas de Eduardo,
não são como as fabulosas passagens lúdicas de Mário
e estão longe dos enigmas mirabolantes de Jacques…
Não revelam as profundezas da alma como os versos de Clarice,
e não se parecem em nada com as palavras do boêmio e faceiro Charles,
não são como os surpreendentes livros de Rosa
e estão anos-luz do realismo de José…
Não são como a solidão lascívia de uma Florbela,
não revelam a vanguarda como Abaporu,
não afrontam como Pagu,
e muito menos estão nos versos doces e adoráveis de Cora.
Quem me dera escrever poemas e dedicá-los a Cuba, assim como fez Neruda,
ou defender o povo latino-americano, como fez Galeano.
Quem me dera fosse tão humana como Quintana.
Quem me dera ter o senso de humor de um expert como Prévert.
Quem me dera fosse um grande escritor, assim como a imensa Lispector.
Quem me dera escrever como Freire, Voltaire ou Baudelaire.
Quem me dera decifrar todas as cores de Guimarães,
ou ter a lucidez e as palavras de afago de Saramago.
Quem me dera encontrar as palavras francas de Espanca.
Quem me dera quebrar tabus como fez Pagu.
Quem me dera retratar indígenas, negros, favelas e vilas como fez Tarsila.
Quem me dera fazer brotar nos meus tachos a doçura de Coralina…
Ah! Quem me dera! Quem me dera!
De que vale a minha arte, se não existe para quem?

Citações
Sou um livro,
com páginas desocupadas,
folhas cruas.
Nas linhas,
enredos de uma vida fugaz,
frases no sentido figurado.
No diário,
páginas arrancadas,
p’ra omitir o pecado.
Alguns caracteres leves,
outros estafantes.
No fundo,
escrevo para perdurar,
p’ra existir,
escrevo,
p’ra seguir em frente,
escrevo, porque é preciso resistir.
Para que não fique ausente
o que tenho p’ra dizer.

Casual
Foi no inesperado
que te encontrei...
Tu, percebendo a fragilidade
do meu ser,
admirando profundamente
o meu olhar enternecido,
observando
a quietude dos meus lábios,
descobriu
todas as minhas fases,
aprendeu
a decifrar os meus mistérios
e a ler o infinito
da minha existência.

És rio, menino
Pensas que és mar!
Desconcertante oceano azul com correntes gélidas e silêncio arrebatador,
com águas glaucas
e gosto de lágrimas insalubres
que, migrando sob distintos rumos,
afunda naves em grandes naufrágios,
em revoltos maremotos.
O Deus Netuno mostra sua força,
buscando mistérios escondidos em cavernas,
por vezes mostra-se calmo e disfarça,
acalentando a velha canoa ancorada na praia,
num pacato bailado de melodia dissonante.
Atinado, insidioso,
mar fatalmente traiçoeiro,
organismo absoluto poderoso
com ondas ferozes, abatimento mortal,
faz desaparecer ínsulas, escava rochas,
revela sua fúria e exibe o interior da íngreme falésia de taludes
de tons alaranjados e cor de mel.
Amado...
Não és mar!
Não és raso e nem esse fundo arrasador!
Conheço-te!
Não és espuma, nem sal!
És rio!
És doce!
E procuras navegar novos leitos,
és água que verte...
Tu...
Rio menino,
rio que transborda,
rio que contorna os obstáculos,
rio que extravasa à procura de novos canais,
rio que flui,
água doce que preenche a cisterna,
que banha o solo,
que traz esperança,
que faz brotar o sustento,
que transborda a moringa.
És Rio doce, Rio Menino!
buscas a correnteza,
buscas novas aventuras.
Em noite banhada de luz,
teus olhos reluzem, cor de avelã.
Amado...
Tu sais à procura de um lugar de cavas profundas,
lugar onde encontrarás o justo repouso,
rio banhando,
rio aguando,
Eu?
Sou leito árido,
Tu...
Rio que mata a minha sede!

A pintura
No quadro tingido de desalentos e frustrações,
o artista imortaliza suas dúvidas e angústias.
Tentando criar uma inusitada obra de arte,
o artista olha o corpo nu.
O corpo é tela em branco, onde produz graciosos afrescos,
cria em pensamentos eminentes cordilheiras,
revela traços nos seios da amada, imponentes picos.
Nas curvas do corpo nu desenha as estradas que ainda não percorreu.
Observa seu quadro inacabado, são pequenos rascunhos.
Produz esboços de divertidas nuvens de algodão
disfarçadas entre as estrias do corpo nu.
Acima do coração eterniza os momentos que foram bons.
Com a ponta dos dedos cheios de tinta
observa o painel,
enxerga o contorno de um corpo, continua compondo a pintura.
Pinta a beleza em movimento e a tempestade afável sem vento.
Pinta os dias turbulentos, agitadas formas estranhas.
Também pinta as mínimas manifestações dos dias de calmaria.
Pinta a Lua grandiosa e algumas partes encobertas,
nuvens melindrosas...
Pinta os mistérios, o dia principiando,
continua pintando a tela, corpo vazio, corpo nu.
Pinta o Romantismo, o Realismo.
Pinta o Impressionismo, o Expressionismo.
Seus olhos brilham, ele renasce.
Triste artista, pinta suas lamúrias,
continua pintando...
Pinta o calor do Sol aquecendo sua alma.
Pinta o canto das cigarras,
o som das matas.
Pinta o cheiro do mato molhado.
Artista insaciável devora sua tela,
pinta mais e mais...
Pinta estradas desconhecidas,
procura desbravar novos caminhos,
pinta o instrumento silencioso do cantador...
O olhar apaixonado do homem comum,
o som estridente da alegria das crianças
e suas lúdicas fantasias.
A tela é corpo cansado...
Precisa adormecer, é corpo exaurido, corpo nu...
Nos pés descalços,
mais e mais pinturas, pinta cada pedaço.
Não és mais tela em branco, és tela habitada de entretons.
Colorido impossível de imprimir...
Pela manhã, a mulher matizada renasce tatuada de beleza.
A arte e as marcas da pintura estão encravadas em seu corpo.
Pureza e contentamento.
Depois de pintar tão belo quadro,
o artista de olhos desconexos apenas observa.
Contempla seu ofício, admira e se orgulha...
Sua obra, tela corada, é corpo marcado de encanto.
Quadro harmonioso...
Pintura sutilmente traçada pelas mãos do artista.
Pelos dedos pincéis,
ele continua examinando o corpo nu vestido de beleza.
O artista, apaixonado pela sua criação,
se entrega à paixão e ama delicadamente sua mais recente obra-prima.

 
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